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J.R. Pereira

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Amostra do Primeiro Capítulo

23/12/2009 12:02

NASCIMENTO

– Bum! Páh! Djim! Venha, amigo! Precisamos tomar o forte apache! Estou com você, amigo! Gri! Gri! Gri! Gri! Gri! Siga-me cabo Rusty! Bam! Bam! Bam! Os índios estão a nossa volta capitão! Toque de ataque! Ta, tará, tará, tará, tará, tará, tará! Avente rapazes! Bam! Bam! Cavalaria avante! Riiiiiiih! Brocotó, brogotó, brogotó! Vejam! Os índios estão recuando! Nós-nunca-vamos-recuar-capitão!? O que veremos, pele-vermelha! Chame o homem do espaço! Chhhhhh! Chamando homem do espaço! Chhhhhh!  Chamando homem do espaço! Câmbio! Chhhhhh! Aqui é homem do espaço! Chhhhhh! Já estou chegando, capitão! Apontar lasers em tonteio! Fogo! Zim! Zim! Zim! Aaaaaah! Não pode escapar de mim, pele-vermelha! Mim-não-escapar! Desça-de-sua-nave-espacial-e-venha-lutar-comigo! Zuuuummm! Plah! Aqui estou, chefe touro-sentado! Você-não-vai-escapar! Ah! Bum! Ah! Tome isso! E isso! Bum! Pah! Plish! Você-não-pode-me-derrotar!? O que veremos! Acionar raio trator! Zuim! Zuim! Zuim! Zuim! Aaaah! Maldito-homem-do-espaço! Estou-preso-no-seu-raio-trator! Tome-isso! Zum! Aaah! Sua lança me atingiu! Mas eu estou protegido com meu traje espacial! Hahahaha! Não senti nada! Mas-eu-também-posso-voar! Pelos-poderes-de-Manitu! Aaaaaaah! Pow! Pah! Isso não vale! Ah! Tum! Chamem o almirante Nelson! Submarino Civil ao resgate! Ah! Tome isso... Tome... Isso... Isso... Iss...


Tremeu o chão do corredor da casa de Hector. Seus brinquedos começaram a pular, pedacinhos de alegria dançando sobre ladrilhos vermelhos.
Saindo da viagem mental colorida de sua brincadeira de há pouco, o menino de oito anos tentou compreender o porquê daquela movimentação diferente e, ao mesmo tempo, tão legal. Pensou que talvez fosse um caminhão ou um ônibus que passava lá atrás, na rua de cima. Isso já aconteceu outras vezes.
E não era a mesma vibração do bate-estaca daquele prédio novo lá do final da outra rua.
Era uma vibração diferente. Mais forte, mais intensa e que vinha crescendo, chegando cada vez mais perto a cada momento. Não parecia com nada do que se lembrava, ou lembrava outra coisa, vagamente.
Pensou um pouco e se lembrou. Sim, claro!
Era o som das turbinas de um jato. Hector sabia a diferença pois morava meio que perto da cabeceira de um aeroporto. Sabia a diferença de um avião movido a hélices e um movido por turbinas. Até dos helicópteros ele conhecia o barulho. Era um de seus passatempos ficar ouvindo os aviões levantanto vôo ou passando no céu, contando suas cores, lendo letras e suas luzes. Era um menino com os olhos no céu, imaginando o que estaria além, depois da tela azul.
Gostava de aviões. Adorava aviões. E adorava a tela azul do céu.
“Esse... Esse avião... Está... Nossa! Está voando baixo, nossa...” – pensou ele, olhando para o fiapo de céu azul, espremido entre as paredes do corredor e de sua casa.
O som do avião cresceu.
“Esse avião aí vem baixinho, baixinho, bem baixinho...”
O medo brotou do caldo de emoções da criança. Era um medo antigo, um medo calcado na anormalidade e na autopreservação. Por outro lado, não fazia sentido sentir medo: ele estava seguro, protegido por paredes altas, em sua casa, salvo, completamente salvo, sem razões para ter medo.
Seria medo de avião? Não, Hector não tinha medo de aviões. Adorava aviões, eram seus amigos de metal, passarinhos de asas paradas. Em toda sua breve vida sempre teve contato com aviões pois morava perto da cabeceira do aeroporto. Acostumou-se com eles. Dormia com o som deles. Mesmo de madrugada, quando os técnicos testavam as turbinas dos aparelhos, seu sono era tranquilo e sossegado. E havia alguns aviões ali entre seus brinquedos: Phanton F5, Steath, B52 e um helicóptero Apache laranja e branco da Matchbox.
Só que, desta vez, o som estava diferente porque...
Não estava certo. Estava alto demais, esquisito e potente.
Os aviões que passam sobre sua casa vêm gritando alto, pousam no aeroporto fazendo um barulhão das rodas tocando no chão para, então, gritar mais alto ainda. Daí sosssegam.
Aquele avião gritava do tipo “mais alto ainda”, mas sem estar na pista. Gritava sufocado, como se estivesse tentando subir para o céu sem conseguir.
Machucado.
Ferido.
Doendo.
Hector abaixou-se e pegou um brinquedo, seu favorito, uma bolinha dourada que parecia um pingente de árvore de Natal. Envolveu seus dedos pequenos e fofos com firmeza na nave espacial, colocando-a no peito, sobre o coração. Não sabia porque fazia isso mas lhe pareceu ser correto.
Hector ficou de pé, olhando com os ouvidos, prestando atenção no céu. Atento à crescente vibração. No barulho terrível de motor desesperado.
Seus ouvidos começaram a doer.
Foi a dica que faltava: alguma coisa estava para acontecer.
Algo gritou, o som entrando pelo corredor como uma serpente invisível. Seu coração deu uma disparada furiosa. O cabelo de sua nuca subiu. Suas pernas queriam correr, ele todo queria fugir, berrar, gritar, chorar...
Mas não queria.
Deu pulinhos de lá para cá.
Foi até o portãozinho que separava o corredor da entrada da garagem, segurando as barras de ferro ondulado verde, meio enferrujadas. Colou o rosto entre as grades, passando a cabeça até parar nas orelhas.
Seus olhos castanhos quase se esticavam para fora da cabeça. Ainda bem que o carro da família não estava ali, seu pai saira mais cedo para ir trabalhar. Assim podia ver a rua e o céu aberto pela garagem, as casas e o medidores de luz e de água da entrada, onde algumas avencas e samambaias de sua mãe dançavam em seus vasos.
Sentiu um peso no peito.
Estava vindo! Estava chegando! O ar dizia isso, o céu dizia isso.
Estava ali, ali, naquele canto, ali!
Chegou.
Aconteceu entre o intervalo de piscadas dos olhos, lento quanto um “replay” dos “Gols da Rodada”. Brilhante pela intensidade, breve pela sua natureza.
Lento, mas instantâneo.

O nariz de um Fokker 100 passou precisamente ali adiante, no pedaço de céu retangular que o menino via da posição em que estava. Mais além, o corpo bojudo e branco da aeronave, adernando para frente. Suas janelas eram como pequenos olhos meio redondos, cravados na fuselagem. Talvez ele havia visto pessoas se movendo lá dentro, ou não, mas essa percepção não seguiu adiante.
Hector viu a brevíssima cena, assustado, alegre, horrorizado, fascinado, com todo medo do mundo mas... Feliz. Era legal! Era muito bacana! Mesmo com o barulho tremendo e o medo, era uma cena incrível! Ele queria chamar sua mãe, seu pai e seus amigos para verem um avião tão grande passando bem na frente de sua casa, com o corpo sobre sua rua, imenso, um gigante que parecia que ia pousar na calçada. Queria chamar alguém,  qualquer um...
Não podia. O tempo se esgotou.
Ele viu a asa daqui, um pedaço da outra asa acolá, os flaps, a turbina, os parafusos salientes da carcaça, algumas cortinas de plástico semi-fechadas, os adesivos da companhia aérea, o avião já quebrando o chão da rua, pousando de qualquer jeito, como podia, desesperadamente...
E o mais legal, a coisa mais linda do mundo: uma parte debaixo da asa de cá se abrindo, vomitando uma cascata de querosene em chamas.
A enchurrada de fogo gritador desabou sobre a garagem e corredor da casa de Hector. Ele foi arremessado para trás, empurrado pelo bafo quente, rodando no ar que nem um boneco de papel na frente de um ventilador. Ao mesmo tempo, recebeu um banho de centenas de litros de combustível incandescente. Uma catarata de chamas inundou o corredor de sua casa, depois sua casa, as casas ao seu redor e, claro, ele e todos os seus brinquedos.
O menino foi coberto, tragado, mastigado e tornado fogo em um tempo menor do que eu poderia narrar.
A carne derretida de seu pequeno corpo colado ao chão mesclou-se com os ladrilhos, tijolos e seus brinquedos.
O avião caiu por inteiro no meio de sua rua, uma massa de metal branco-enegrecido, desabando numa hecatombe de entulho, com sua carcaça lotada de pessoas, raspando telhados, telhas, estuque, vergalhões, vasos e soltando tripas de aço amassadas em malas e restos humanos.
Mas ali, naquela casa branca de classe média, as chamas espremidas do acidente, brancas e amarelas, levaram ao léu pedaços calcinados de infância, sonhos e sentimentos de menino.

Um menino anônimo, um qualquer...
Que cessou de existir.

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